Eu nunca pedi por truques de mágica nem fogos de artifício. Ossos do ofício de quem não tem juízo ou tampouco siso e provoca o riso para se libertar. Como que um aviso por mero capricho vindo de um nicho de não arriscar. Não te peço abrigo nem mesmo o rabisco, um rascunho do início só pra me salvar.
Não quero respostas nem sua meia-volta ou fazer apostas de quem vai vencer. E me pouco gosta que me vire as costas ou se me encosta só por querer ter. Pra dizer que gosta, a mentira composta dentre tanta bosta só pra não perder.
Não quero viver, morrer, sonhar e me acabar sem nunca saber se tudo é verdade ou a felicidade não mora aqui e nunca morou. Se vai me dizer ou repreender e pensar amar sem se perguntar se é pra sempre ou mente enquanto acredita que acabou.
Não quero ser salvo, mas não sou um alvo esculpido no malvo para ser papalvo de quem bem entender.
Nunca fui. Nunca serei.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
sábado, 17 de janeiro de 2015
Éramos Três
Essa noite sonhei com você. Há muito tempo que não te encontrava em meus terrores noturnos, há muito já quase esquecia seu rosto. No sonho, éramos três, sombras do que já fomos. Os mesmos três escondidos da chuva sob a sombra da capela. Os mesmos três bêbados tarde da noite no fundo do quintal. Mas era diferente.
Foi numa estação de trem que eu te vi, entre centenas de faces anônimas, borrões de tinta numa tela ordinária. Mas o seu rosto me vem tão claro quanto a luz do dia. No sonho, nós dois éramos quase adultos - legalmente homens - como de fato somos em vida. Você era um garoto como quando na última vez que te vi, com lábios e olhos colados num repouso sublime. Como quando não fiquei para ver a primeira pá despejar terra vermelha sobre o tampo perolado do caixão.
Estávamos nos despedindo, você entrava num trem enquanto assistíamos você partir, como foi de fato. Nós, as duas hastes que nunca mais conseguiram manter esse tripé no mesmo lugar depois que te perdemos. Foi então que todas as luzes se apagaram e toda a estação ficou entregue à escuridão. Só enxergava o pouco que a luz do sol que entrava pelas laterais da plataforma me permitiam ver. E vi você, dentro da composição que estacionou por falta de energia, assustado como um garoto que era.
Corri até chegar à sua porta. Usei toda a força que tinha e que não tinha para tentar abri-la, sem sucesso. Como se soubesse que invadir o mausoléu furtivamente com o número de sua quadra e sua cova e cavar a noite toda para abrir o seu caixão não fosse te trazer de volta. Como uma mensagem que nada que eu pudesse fazer te traria de volta. Nem hoje, nem nunca. Nem mesmo num sonho, eu fui capaz de não te deixar ir. E nem fui capaz de te fazer ficar.
Mas na verdade, eu quis abrir a porta para entrar, e não pra te tirar de lá. Para ir embora, pra onde quer que aqueles trilhos nos levassem. No egoísmo de deixá-lo para trás sem nenhum de nós dois.
E por mais que eu tente, ainda não consigo entender o que meu sonho quis dizer. Não entendo o motivo do trem ter parado e me dado a oportunidade de tentar - em vão - abrir a porta e empreender viagem contigo.
E tudo isso me fez reviver o ano mais difícil da minha vida e repensar quase todas as decisões. E, como sempre, imaginar como seria se você ainda estivesse aqui, segurando esse tripé que éramos nós.
Mas você não está.
Nós éramos três. Hoje já nem sei mais.
Foi numa estação de trem que eu te vi, entre centenas de faces anônimas, borrões de tinta numa tela ordinária. Mas o seu rosto me vem tão claro quanto a luz do dia. No sonho, nós dois éramos quase adultos - legalmente homens - como de fato somos em vida. Você era um garoto como quando na última vez que te vi, com lábios e olhos colados num repouso sublime. Como quando não fiquei para ver a primeira pá despejar terra vermelha sobre o tampo perolado do caixão.
Estávamos nos despedindo, você entrava num trem enquanto assistíamos você partir, como foi de fato. Nós, as duas hastes que nunca mais conseguiram manter esse tripé no mesmo lugar depois que te perdemos. Foi então que todas as luzes se apagaram e toda a estação ficou entregue à escuridão. Só enxergava o pouco que a luz do sol que entrava pelas laterais da plataforma me permitiam ver. E vi você, dentro da composição que estacionou por falta de energia, assustado como um garoto que era.
Corri até chegar à sua porta. Usei toda a força que tinha e que não tinha para tentar abri-la, sem sucesso. Como se soubesse que invadir o mausoléu furtivamente com o número de sua quadra e sua cova e cavar a noite toda para abrir o seu caixão não fosse te trazer de volta. Como uma mensagem que nada que eu pudesse fazer te traria de volta. Nem hoje, nem nunca. Nem mesmo num sonho, eu fui capaz de não te deixar ir. E nem fui capaz de te fazer ficar.
Mas na verdade, eu quis abrir a porta para entrar, e não pra te tirar de lá. Para ir embora, pra onde quer que aqueles trilhos nos levassem. No egoísmo de deixá-lo para trás sem nenhum de nós dois.
E por mais que eu tente, ainda não consigo entender o que meu sonho quis dizer. Não entendo o motivo do trem ter parado e me dado a oportunidade de tentar - em vão - abrir a porta e empreender viagem contigo.
E tudo isso me fez reviver o ano mais difícil da minha vida e repensar quase todas as decisões. E, como sempre, imaginar como seria se você ainda estivesse aqui, segurando esse tripé que éramos nós.
Mas você não está.
Nós éramos três. Hoje já nem sei mais.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Faux Pas - Um Ensaio Sobre a Ansiedade
Quando eu respiro, o ar que preenche meus pulmões é tão denso que eu acredito estar me afogando. Sentindo-me meio vivo, meio morto, sempre à espera. À espera de qualquer coisa. Algo que eu sempre sei que vai acontecer embora nunca saiba o que é. Embora esse algo nunca aconteça.
A ansiedade como você conhece é bem diferente da qual eu me refiro. Não é aquele sentimento de expectativa ou medo antes de rever uma pessoa importante que há muito já não vê ou antes daquela entrevista de emprego super importante.
A ansiedade a qual me refiro é mais visceral e escura. Escura como nódulos - ou insetos, ou aviões, ou nuvens que formam figuras de insetos e aviões - que enxergo por debaixo das pálpebras todas as vezes em que fecho os olhos. É o sentimento de completo vazio e insignificância. A ansiedade a qual me refiro é o monstro que me segura na cama e me impede de levantar pela manhã todas as vezes. Porque ele me convenceu de que eu não vou conseguir completar coisa alguma.
Os sintomas do Transtorno de Ansiedade Generalizada incluem fadiga, irritabilidade, constante sensação de apreensão, dificuldade de concentração, palpitação, taquicardia e tensão muscular. Basicamente, a sensação que você tem num acidente de trânsito. Logo depois daquele momento onde você percebe que não dá mais tempo de frear e a batida é inevitável. Ou quando descobrem algo que não deveriam. Ou quando alguém te pega no flagra fazendo algo que não deveria. Eu chamo carinhosamente esse sentimento de "fodeu". Ter ansiedade é estar com a chave do "fodeu" ligada o tempo todo sem nem saber o porquê.
Felizmente, nunca fui diagnosticado e bem sei que ter os sintomas não quer dizer nada, mas eu também nunca procurei ajuda. E gosto de acreditar que uma coisa não tem a ver com a outra. Mas vivo com a constante sensação de ter cometido uma gafe e que todos estão prontos para rirem e debocharem de mim. Então eu tenho medo de dizer um monte de coisas, medo de ir a um monte de lugares, Medo do medo.
E exatamente pelo medo dessa "gafe invisível" eu deixo de fazer muitas coisas. Para evitar que essa sensação seja intensificada, para não dar mais motivos para ser alvo de deboche. É um estado de alerta e auto consciência constante. Sempre acho que meu cabelo está desarrumado. Sempre acho que tenho buracos nas roupas e nos sapatos. Fico paranoico quando qualquer pessoa olha pra mim por mais que alguns segundos.
É ter sono e não conseguir dormir porque - MEU DEUS, TEM TANTA COISA PASSANDO NA MINHA CABEÇA AGORA QUE PARECE QUE ELA VAI EXPLODIR! É não ter sono, mas não levantar da cama porque o mundo lá fora quer caçoar de mim. Não lhes darei esse prazer. Vou dormir mais dez minutinhos para eles saírem da minha janela.
Tem dias que dá pra levar numa boa, tem dias que se torna insuportável. Nos primeiros, eu levo numa boa, desencano. Ao invés de ligar o "fodeu" eu ligo o "foda-se", o irmão gêmeo antipático. E tudo é ótimo e bonito e sensacional. Porém, nos dias ruins em que eu não consigo ler um livro, em que eu demoro duas horas pra redigir um texto porco como esse, dias em que não consigo ver o sol mesmo que ele esteja lá fora, rachando o concreto num calor de trinta e seis graus, eu tento me esconder de mim mesmo.
Ser fitado por pares de olhos invisíveis, criticado por pares de lábios inexoráveis. Saber que é tudo coisa da minha cabeça não ajuda com a taquicardia e nem com as náuseas. Não ajuda com as dores de cabeça e o vômito. Saber que é tudo criação da minha cabeça não faz com que deixe de ser real. É o inimigo invisível que destrói minha auto estima e meu bom senso. É falhar pelo medo de falhar. É andar desajeitado por tentar calcular feito máquina os passos sobre o pavimento.
Nesses dias, eu respiro fundo e tento me convencer de que vai passar. Nesses dias eu me deito um pouco mais, me cubro um pouco mais, me deixo um pouco mais.
Só por mais dez minutinhos.
A ansiedade como você conhece é bem diferente da qual eu me refiro. Não é aquele sentimento de expectativa ou medo antes de rever uma pessoa importante que há muito já não vê ou antes daquela entrevista de emprego super importante.
A ansiedade a qual me refiro é mais visceral e escura. Escura como nódulos - ou insetos, ou aviões, ou nuvens que formam figuras de insetos e aviões - que enxergo por debaixo das pálpebras todas as vezes em que fecho os olhos. É o sentimento de completo vazio e insignificância. A ansiedade a qual me refiro é o monstro que me segura na cama e me impede de levantar pela manhã todas as vezes. Porque ele me convenceu de que eu não vou conseguir completar coisa alguma.
Os sintomas do Transtorno de Ansiedade Generalizada incluem fadiga, irritabilidade, constante sensação de apreensão, dificuldade de concentração, palpitação, taquicardia e tensão muscular. Basicamente, a sensação que você tem num acidente de trânsito. Logo depois daquele momento onde você percebe que não dá mais tempo de frear e a batida é inevitável. Ou quando descobrem algo que não deveriam. Ou quando alguém te pega no flagra fazendo algo que não deveria. Eu chamo carinhosamente esse sentimento de "fodeu". Ter ansiedade é estar com a chave do "fodeu" ligada o tempo todo sem nem saber o porquê.
Felizmente, nunca fui diagnosticado e bem sei que ter os sintomas não quer dizer nada, mas eu também nunca procurei ajuda. E gosto de acreditar que uma coisa não tem a ver com a outra. Mas vivo com a constante sensação de ter cometido uma gafe e que todos estão prontos para rirem e debocharem de mim. Então eu tenho medo de dizer um monte de coisas, medo de ir a um monte de lugares, Medo do medo.
E exatamente pelo medo dessa "gafe invisível" eu deixo de fazer muitas coisas. Para evitar que essa sensação seja intensificada, para não dar mais motivos para ser alvo de deboche. É um estado de alerta e auto consciência constante. Sempre acho que meu cabelo está desarrumado. Sempre acho que tenho buracos nas roupas e nos sapatos. Fico paranoico quando qualquer pessoa olha pra mim por mais que alguns segundos.
É ter sono e não conseguir dormir porque - MEU DEUS, TEM TANTA COISA PASSANDO NA MINHA CABEÇA AGORA QUE PARECE QUE ELA VAI EXPLODIR! É não ter sono, mas não levantar da cama porque o mundo lá fora quer caçoar de mim. Não lhes darei esse prazer. Vou dormir mais dez minutinhos para eles saírem da minha janela.
Tem dias que dá pra levar numa boa, tem dias que se torna insuportável. Nos primeiros, eu levo numa boa, desencano. Ao invés de ligar o "fodeu" eu ligo o "foda-se", o irmão gêmeo antipático. E tudo é ótimo e bonito e sensacional. Porém, nos dias ruins em que eu não consigo ler um livro, em que eu demoro duas horas pra redigir um texto porco como esse, dias em que não consigo ver o sol mesmo que ele esteja lá fora, rachando o concreto num calor de trinta e seis graus, eu tento me esconder de mim mesmo.
Ser fitado por pares de olhos invisíveis, criticado por pares de lábios inexoráveis. Saber que é tudo coisa da minha cabeça não ajuda com a taquicardia e nem com as náuseas. Não ajuda com as dores de cabeça e o vômito. Saber que é tudo criação da minha cabeça não faz com que deixe de ser real. É o inimigo invisível que destrói minha auto estima e meu bom senso. É falhar pelo medo de falhar. É andar desajeitado por tentar calcular feito máquina os passos sobre o pavimento.
Nesses dias, eu respiro fundo e tento me convencer de que vai passar. Nesses dias eu me deito um pouco mais, me cubro um pouco mais, me deixo um pouco mais.
Só por mais dez minutinhos.
domingo, 11 de janeiro de 2015
Horizontes de Carvão
O ano acabou e eu sobrevivi. Como disse que faria, como muitas vezes duvidei.
Acordei há pouco mais de um mês. Saí do fundo da minha cabine escura para tomar o convés depois de anos à deriva em mares turbulentos. Eu perdi meu equilíbrio com o balanço do navio e temo um dia trançar pernas feito um bêbado em fim de novo quando finalmente aportar em qualquer lugar.
Quando olhei ao meu redor, nada vi senão a água gélida e agitada e paredões de nuvens negras no horizonte como pilhas de carvão sem nenhum fósforo para acender. Tomei o leme e vesti uma cota de malha para encerrar minha cota de erros. Não porque temo meus inimigos, mas para afundar de uma só vez se uma hora eu cair no mar.
Embora em tempos turbulentos, não deixei de pensar que não pude ver o sol há um bom tempo, mesmo nos dias com céu aberto e águas calmas. Á deriva, me reneguei ao fundo da cabine fitando goteiras do convés agarrado a uma garrafa de rum barato. Escrevendo todos os meus arrependimentos em pergaminhos ensopados até que não houvesse mais tinta. Esperava ser encontrado, morto de sede, de fome. Ou ter coragem o bastante para um dia me atirar no mar e me entregar à imensidão cinza azulada. Esperava que alguém me salvasse de mim mesmo, à deriva, incapaz de ver o sol mesmo que ele estivesse do outro lado da portinhola.
Mas eu resolvi sair, subir ao convés e encontrar terra firme. Mais distante do que nunca, mais perdido do que nunca. Sem nada para comer, beber ou fumar. Talvez seja tarde demais, talvez eu não encontre terra firme ainda vivo. E talvez ninguém me encontre. Então resolvo assumir toda a culpa: eu me trouxe até aqui, tive meus motivos para querer me ver afundar. Me coloquei dentro de uma armadilha e somente eu posso me salvar.
E no primeiro passo, já vi o que enfrentaria: antes de sair do convés, um degrau de carvalho cedeu com a ação do tempo e se quebrou debaixo dos meus pés, mas me equilibrei para não cair. Quando finalmente desisti da ideia de morrer, alguém me oferece um perigo real: um degrau sorrateiro na minha subida.
No convés, fitei o mar e o céu cinza ao meu redor. Nunca naveguei águas tão escuras e tão frias, nunca estive tão perdido. Mas nunca senti tanta determinação em me encontrar. Rezei tanto por uma tempestade que ela de fato chegou. E justo no momento em que tive vontade de viver.
Um navio velho sem tripulação, nenhum mapa, água ou comida. Há centenas de léguas de lugar algum, mas eu ainda acredito. Ainda penso em desbravar as águas turbulentas e cinzas para Norte e Oeste. E ver até onde esses horizontes de carvão podem me levar. Eles são tudo o que eu tenho agora: a linha da curvatura da Terra, água, sal, chuva e nuvens escuras.
Me falta navegar para qualquer lugar. Casa, eu acredito. Onde quer que ela esteja.
Acordei há pouco mais de um mês. Saí do fundo da minha cabine escura para tomar o convés depois de anos à deriva em mares turbulentos. Eu perdi meu equilíbrio com o balanço do navio e temo um dia trançar pernas feito um bêbado em fim de novo quando finalmente aportar em qualquer lugar.
Quando olhei ao meu redor, nada vi senão a água gélida e agitada e paredões de nuvens negras no horizonte como pilhas de carvão sem nenhum fósforo para acender. Tomei o leme e vesti uma cota de malha para encerrar minha cota de erros. Não porque temo meus inimigos, mas para afundar de uma só vez se uma hora eu cair no mar.
Embora em tempos turbulentos, não deixei de pensar que não pude ver o sol há um bom tempo, mesmo nos dias com céu aberto e águas calmas. Á deriva, me reneguei ao fundo da cabine fitando goteiras do convés agarrado a uma garrafa de rum barato. Escrevendo todos os meus arrependimentos em pergaminhos ensopados até que não houvesse mais tinta. Esperava ser encontrado, morto de sede, de fome. Ou ter coragem o bastante para um dia me atirar no mar e me entregar à imensidão cinza azulada. Esperava que alguém me salvasse de mim mesmo, à deriva, incapaz de ver o sol mesmo que ele estivesse do outro lado da portinhola.
Mas eu resolvi sair, subir ao convés e encontrar terra firme. Mais distante do que nunca, mais perdido do que nunca. Sem nada para comer, beber ou fumar. Talvez seja tarde demais, talvez eu não encontre terra firme ainda vivo. E talvez ninguém me encontre. Então resolvo assumir toda a culpa: eu me trouxe até aqui, tive meus motivos para querer me ver afundar. Me coloquei dentro de uma armadilha e somente eu posso me salvar.
E no primeiro passo, já vi o que enfrentaria: antes de sair do convés, um degrau de carvalho cedeu com a ação do tempo e se quebrou debaixo dos meus pés, mas me equilibrei para não cair. Quando finalmente desisti da ideia de morrer, alguém me oferece um perigo real: um degrau sorrateiro na minha subida.
No convés, fitei o mar e o céu cinza ao meu redor. Nunca naveguei águas tão escuras e tão frias, nunca estive tão perdido. Mas nunca senti tanta determinação em me encontrar. Rezei tanto por uma tempestade que ela de fato chegou. E justo no momento em que tive vontade de viver.
Um navio velho sem tripulação, nenhum mapa, água ou comida. Há centenas de léguas de lugar algum, mas eu ainda acredito. Ainda penso em desbravar as águas turbulentas e cinzas para Norte e Oeste. E ver até onde esses horizontes de carvão podem me levar. Eles são tudo o que eu tenho agora: a linha da curvatura da Terra, água, sal, chuva e nuvens escuras.
Me falta navegar para qualquer lugar. Casa, eu acredito. Onde quer que ela esteja.
domingo, 4 de janeiro de 2015
Luz do Sol
Eu convenci a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Nem apenas uma vez que fosse. Mas nos últimos vinte dias, um conjunto de palavras ganhou força dentro da minha cabeça e tem implorado para sair desde então. Eu escrevo a maioria dos textos, mas tem alguns que eu só digito. Eles já existem e esperam que eu lhes dê vida em algum momento. Eu tenho essa facilidade de encontrar as palavras certas quando já é tarde demais. E esse é um desses textos.
Nunca quis isso. Nem o começo, nem o final. Eu estive apagado por muito tempo, eu estive submerso, quase vivo. Na época, eu não queria viver nada disso que eu vivi no último ano. Mas numa manhã quente de sábado, com o sol brilhando forte e preenchendo o quarto com calor e uma luz amarelada eu resolvi me permitir enquanto te ouvia respirar. E quando você foi embora, lembro-me de parar na esquina e te ver andando enquanto seus passos marcavam o ritmo de uma música no fone de ouvido, uma dança de graça e naturalidade. Fiquei lá por minutos, até te perder de vista e um pouco mais. Seis meses se passaram enquanto eu via você desaparecendo, um passo de cada vez, um pé na frente do outro. Suando debaixo do sol quente, querendo correr e te alcançar tendo me sobrado fôlego o bastante pra te dizer algo que nem eu sabia o que era. Era a felicidade em suas cores mais puras.
Vou passar por mais um ano e outros depois dele. Uma enxurrada de anos novos e manhãs de Janeiro vão se acumular na minha vida entre mais erros que acertos, mas salvei um espaço especial para guardar aquele sábado, há um ano atrás. Como quando a gente guarda aquela camisa velha e encardida que já não serve mais, mas que significou tanto que não há maneira de apenas jogá-la fora, mesmo que quiséssemos. Como aquele cachorro velho que a gente nunca conseguiu sacrificar por amar demais. Assim como guardo cartas, guardo presentes, guardo textos e fotos, memórias que eu sei que só vão me torturar mais sabendo que nada disso vai voltar. Mas eu tenho medo de me esquecer de qualquer coisa, embora muitas vezes eu queira.
Me lembro, ainda, de tantas outras coisas. Promessas escritas e embrulhadas em papel amassado, enroladas por linha de costura vermelha. Segredos e músicas cantadas no pé do ouvido. A melodia que tocava quando você abria a boca para dizer qualquer coisa, por mais estúpida que fosse. Eu guardo tudo com carinho e pesar ao mesmo tempo. Oceanos gélidos de lembranças doces. E ainda me sento na frente do mar para ver as ondas se quebrando nas pedras, sabendo que a água é fria e agitada demais para que eu possa entrar. Como aquele filme que a gente assiste várias vezes tentando convencer a si mesmo que dessa vez vai ter um final feliz.
Esquecer nunca fez sentido pra mim, nem antes e nem agora. Simplesmente não funciona comigo, e ás vezes me pego perguntando se eu gostaria de esquecer se pudesse. Pois, afinal de contas, tornaria tudo tão mais fácil, tão mais simples. Pra mim, nada e nem ninguém nunca foi um rabisco a lápis no rodapé de um livro que a gente apaga com borracha quando devolve pra biblioteca. Sempre escrevi as páginas da minha vida com tinta preta e com bastante força quase rasgando cada página de uma bíblia que fica aberta nos salmos na minha casa. E agora você entende como ter uma memória como a minha pode ser uma desvantagem.
De repente percebi que perdi minhas cores, pelo menos para você. Meu aço enferrujou e se tornou quebradiço, meu assoalho de madeira apodreceu e passou a se esfarelar sob seus pés. Meus livros foram tomados pelo bolor e pelas traças. Minhas cores desbotaram como em fotos velhas que a gente guarda sem nem se lembrar quem são as pessoas que nela aparecem. A sombra de algo que um dia já foi. Passei tempo demais debaixo do sol te vendo caminhar pra casa. E todos os sonhos deixados muito tempo sob a luz do sol tendem a desaparecer cedo ou tarde.
Todos os cantos dessa cidade me fazem lembrar, todas as músicas, todas as cores, todos os filmes na TV. O bairro que você mora. O bairro em que você morava. Uma padaria que ainda está à venda desde a época que eu te acompanhava da faculdade até em casa tarde da noite sem medo de morrer ou ser estuprado. E é absolutamente tudo. Ás vezes acordo com meu ronco e você não está lá para reclamar. Ás vezes sonho que acordo na sua cama. E eu tenho andado por aí com os olhos no chão com medo de te encontrar na rua. E ás vezes eu até gostaria de te encontrar e ter algo para contar. Gostaria que estivesse mais gordo, barbado e sem cabelo para que não me reconhecesse. Mas eu nunca encontro, mesmo passando pelos mesmos lugares que passava quando estávamos juntos. É como se estivesse perseguindo seu fantasma com medo de encontrar.
Aqueles discos soam ainda mais tristes, como se na época fossem presságios do que significariam pra mim um dia. E faço questão de manter tudo na maior desordem possível porque sei que você gostaria que tudo estivesse arrumado. E tenho fumado mais porque sei que você odeia. Tenho reclamado mais do que antes porque te irritava. Tenho estragado mais piadas explicando elas depois que todo mundo já entendeu porque se você estivesse aqui ficaria com raiva. Tenho tentado te odiar sem sucesso há um bom tempo porque o caminho do ódio é sempre mais fácil. Destruir sempre foi mais fácil do que construir. Efeitos colaterais de tantos dias memoráveis, da perfeita simetria de corpos que se encontram no escuro sem precisar de um mapa, frases bobas em línguas de sinais e outros dias de eternas discussões sobre cafés da manhã, toalhas de mesa e nomes de filhos que nunca teremos. O buraco por onde sai o tiro é quase sempre maior do que aquele que ele deixa quando entra e o buraco que você deixou vai precisar de muito mais do que areia ou cascalho pra cobrir.
Dias como esses nunca foram e nem serão de graça. Eles cobram seu preço cedo ou tarde, das maneiras mais diferentes possíveis. Mas eu pagaria quantas vezes eu precisasse pra poder guardá-los naquele espaço que eu salvei. Sou o único que sei pelo que eu passei e sinceramente não espero que tenha passado por metade disso. Mas estou melhor a cada dia. Pois mesmo agora, o sol da manhã de Janeiro me traz uma estranha felicidade possível somente nos raros verões onde a gente acredita que tudo é possível. Um souvenir de como é bonito não enxergar nada além do lado bom das coisas. Hoje eu me amo mais ou pelo menos me odeio menos do que há um ano, o que era quase nada se comparado há uns trinta e cinco dias atrás.
Nem mesmo agora tenho certeza se eu realmente quero, devo ou posso dizer tudo isso pois eu convenci a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Nem apenas uma vez que fosse. Mas eu precisava te agradecer por ter me dado tanto do seu tempo, por ter aberto a porta da sua casa, por ter me deixado brincar com seus cachorros enquanto fumava no quintal. Por ter me estendido a mão quando eu precisei, embora eu não tenha agarrado nela firme o bastante. Por ter me feito olhar pra trás tantas vezes saindo da sua casa, por querer correr até você tantas outras vezes durante a madrugada só pra te ouvir dizer uma frase de três palavras. Por não ter me dado motivos para não querer ouvi-las. Por ter me aturado esse tempo todo. Por ter sido a última pessoa em sã consciência a acreditar em mim. Obrigado.
Você nunca foi do tipo que precisou bater na madeira, e espero que nunca seja. E espero que eu também deixe de precisar um dia. Quem sabe numa dessas manhãs de verão.
Nunca quis isso. Nem o começo, nem o final. Eu estive apagado por muito tempo, eu estive submerso, quase vivo. Na época, eu não queria viver nada disso que eu vivi no último ano. Mas numa manhã quente de sábado, com o sol brilhando forte e preenchendo o quarto com calor e uma luz amarelada eu resolvi me permitir enquanto te ouvia respirar. E quando você foi embora, lembro-me de parar na esquina e te ver andando enquanto seus passos marcavam o ritmo de uma música no fone de ouvido, uma dança de graça e naturalidade. Fiquei lá por minutos, até te perder de vista e um pouco mais. Seis meses se passaram enquanto eu via você desaparecendo, um passo de cada vez, um pé na frente do outro. Suando debaixo do sol quente, querendo correr e te alcançar tendo me sobrado fôlego o bastante pra te dizer algo que nem eu sabia o que era. Era a felicidade em suas cores mais puras.
Vou passar por mais um ano e outros depois dele. Uma enxurrada de anos novos e manhãs de Janeiro vão se acumular na minha vida entre mais erros que acertos, mas salvei um espaço especial para guardar aquele sábado, há um ano atrás. Como quando a gente guarda aquela camisa velha e encardida que já não serve mais, mas que significou tanto que não há maneira de apenas jogá-la fora, mesmo que quiséssemos. Como aquele cachorro velho que a gente nunca conseguiu sacrificar por amar demais. Assim como guardo cartas, guardo presentes, guardo textos e fotos, memórias que eu sei que só vão me torturar mais sabendo que nada disso vai voltar. Mas eu tenho medo de me esquecer de qualquer coisa, embora muitas vezes eu queira.
Me lembro, ainda, de tantas outras coisas. Promessas escritas e embrulhadas em papel amassado, enroladas por linha de costura vermelha. Segredos e músicas cantadas no pé do ouvido. A melodia que tocava quando você abria a boca para dizer qualquer coisa, por mais estúpida que fosse. Eu guardo tudo com carinho e pesar ao mesmo tempo. Oceanos gélidos de lembranças doces. E ainda me sento na frente do mar para ver as ondas se quebrando nas pedras, sabendo que a água é fria e agitada demais para que eu possa entrar. Como aquele filme que a gente assiste várias vezes tentando convencer a si mesmo que dessa vez vai ter um final feliz.
Esquecer nunca fez sentido pra mim, nem antes e nem agora. Simplesmente não funciona comigo, e ás vezes me pego perguntando se eu gostaria de esquecer se pudesse. Pois, afinal de contas, tornaria tudo tão mais fácil, tão mais simples. Pra mim, nada e nem ninguém nunca foi um rabisco a lápis no rodapé de um livro que a gente apaga com borracha quando devolve pra biblioteca. Sempre escrevi as páginas da minha vida com tinta preta e com bastante força quase rasgando cada página de uma bíblia que fica aberta nos salmos na minha casa. E agora você entende como ter uma memória como a minha pode ser uma desvantagem.
De repente percebi que perdi minhas cores, pelo menos para você. Meu aço enferrujou e se tornou quebradiço, meu assoalho de madeira apodreceu e passou a se esfarelar sob seus pés. Meus livros foram tomados pelo bolor e pelas traças. Minhas cores desbotaram como em fotos velhas que a gente guarda sem nem se lembrar quem são as pessoas que nela aparecem. A sombra de algo que um dia já foi. Passei tempo demais debaixo do sol te vendo caminhar pra casa. E todos os sonhos deixados muito tempo sob a luz do sol tendem a desaparecer cedo ou tarde.
Todos os cantos dessa cidade me fazem lembrar, todas as músicas, todas as cores, todos os filmes na TV. O bairro que você mora. O bairro em que você morava. Uma padaria que ainda está à venda desde a época que eu te acompanhava da faculdade até em casa tarde da noite sem medo de morrer ou ser estuprado. E é absolutamente tudo. Ás vezes acordo com meu ronco e você não está lá para reclamar. Ás vezes sonho que acordo na sua cama. E eu tenho andado por aí com os olhos no chão com medo de te encontrar na rua. E ás vezes eu até gostaria de te encontrar e ter algo para contar. Gostaria que estivesse mais gordo, barbado e sem cabelo para que não me reconhecesse. Mas eu nunca encontro, mesmo passando pelos mesmos lugares que passava quando estávamos juntos. É como se estivesse perseguindo seu fantasma com medo de encontrar.
Aqueles discos soam ainda mais tristes, como se na época fossem presságios do que significariam pra mim um dia. E faço questão de manter tudo na maior desordem possível porque sei que você gostaria que tudo estivesse arrumado. E tenho fumado mais porque sei que você odeia. Tenho reclamado mais do que antes porque te irritava. Tenho estragado mais piadas explicando elas depois que todo mundo já entendeu porque se você estivesse aqui ficaria com raiva. Tenho tentado te odiar sem sucesso há um bom tempo porque o caminho do ódio é sempre mais fácil. Destruir sempre foi mais fácil do que construir. Efeitos colaterais de tantos dias memoráveis, da perfeita simetria de corpos que se encontram no escuro sem precisar de um mapa, frases bobas em línguas de sinais e outros dias de eternas discussões sobre cafés da manhã, toalhas de mesa e nomes de filhos que nunca teremos. O buraco por onde sai o tiro é quase sempre maior do que aquele que ele deixa quando entra e o buraco que você deixou vai precisar de muito mais do que areia ou cascalho pra cobrir.
Dias como esses nunca foram e nem serão de graça. Eles cobram seu preço cedo ou tarde, das maneiras mais diferentes possíveis. Mas eu pagaria quantas vezes eu precisasse pra poder guardá-los naquele espaço que eu salvei. Sou o único que sei pelo que eu passei e sinceramente não espero que tenha passado por metade disso. Mas estou melhor a cada dia. Pois mesmo agora, o sol da manhã de Janeiro me traz uma estranha felicidade possível somente nos raros verões onde a gente acredita que tudo é possível. Um souvenir de como é bonito não enxergar nada além do lado bom das coisas. Hoje eu me amo mais ou pelo menos me odeio menos do que há um ano, o que era quase nada se comparado há uns trinta e cinco dias atrás.
Nem mesmo agora tenho certeza se eu realmente quero, devo ou posso dizer tudo isso pois eu convenci a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Nem apenas uma vez que fosse. Mas eu precisava te agradecer por ter me dado tanto do seu tempo, por ter aberto a porta da sua casa, por ter me deixado brincar com seus cachorros enquanto fumava no quintal. Por ter me estendido a mão quando eu precisei, embora eu não tenha agarrado nela firme o bastante. Por ter me feito olhar pra trás tantas vezes saindo da sua casa, por querer correr até você tantas outras vezes durante a madrugada só pra te ouvir dizer uma frase de três palavras. Por não ter me dado motivos para não querer ouvi-las. Por ter me aturado esse tempo todo. Por ter sido a última pessoa em sã consciência a acreditar em mim. Obrigado.
Você nunca foi do tipo que precisou bater na madeira, e espero que nunca seja. E espero que eu também deixe de precisar um dia. Quem sabe numa dessas manhãs de verão.
quinta-feira, 1 de janeiro de 2015
X - A Queda
Aterrissamos sem demais problemas em Boston apesar da pista estar escorregadia graças à chuva e ao gelo assistindo a fria água do Atlântico refletindo as luzes dos fogos de artifício. Entramos no Táxi e nos dirigimos para o nosso Hotel: Uma torre espelhada com tantos andares que eu mal poderia contar.
Me instalei numa suíte extravagante com muito mais do que eu precisava. Comecei a desfazer minhas malas quando encontrei algo curioso: um telefone celular. Eu digo curioso porque, até então, eu não tinha um. O último que eu lembro de ter morreu no fundo do rio no dia que eu caí.
Examinei o aparelho por alguns instantes. Liguei-o e percebi que ele estava bloqueado, precisava de uma senha que eu não conhecia. Larguei ele sobre a mesa e terminei de desfazer minhas malas ainda curioso com o artefato. Tomei um banho e fui dormir.
Sonhei com Frida, a mulher do fundo do rio. Ela se despia enquanto sussurrava uma canção sobre o fim do mundo.
Acordei na manhã seguinte com Ross batendo a minha porta. Eram nove e quinze da manhã e iríamos a algum lugar. Eu me arrumava para sair quando me lembrei do celular. Apanhei-o de cima da mesa e ele tinha a luz do display acesa e uma nova mensagem.
"Saia do prédio o quanto antes."
Fiquei perturbado pelo conteúdo da mensagem, mas acabei ignorando. Enfiei o telefone no bolso e encontrei Ross no corredor me esperando. Descemos até o saguão e saímos do Hotel. Nos dirigíamos a um beco ao lado do edifício para fumar. Esperávamos Frida para seguir viagem. De acordo com Ross, iríamos ao sul da cidade verificar alguns imóveis que já pertenceram a mim no passado - embora eu não me lembre disso.
Antes de sair, apanhei uma navalha no banheiro e escondi no bolso do casaco.
Pensei em contar para Ross sobre o celular que apareceu na minha mala na noite seguinte, mas preferi manter isso em segredo por hora. Foi quando o telefone tocou. Eu me assustei e quase deixei cair o cigarro da boca. Só então percebi que não era o meu telefone que tocava e sim o dele. Meia dúzias de "Ok" e "sim" foram o bastante pra ele terminar a ligação.
- Vamos sem ela - disse o velho carrancudo.
Alugamos um carro e basicamente passamos o primeiro dia do ano arrombando garagens e apartamentos. Casas e pequenos porões. Fazendo perguntas em halls de edifício e balcões de bar. Nada. Apenas encontramos lugares vazios, e vizinhos que não viram nada e não sabiam de nada.
Quando decidimos voltar ao Hotel e continuar no dia seguinte, eu estava exausto e faminto. Resolvemos passar numa costelaria. Aproveitei a ida no banheiro para verificar as mensagens no celular. Novas mensagens se acumulavam na caixa de entrada.
"Eles derrubaram o avião. Assim que eles encontrarem os livros, vão te matar."
"Me encontre hoje à noite no terraço do Hotel. Precisamos conversar."
"Há uma arma no banheiro de sua suíte, você pode precisar."
Todas as mensagens assinadas por Francis, que julguei ser o homem de cavanhaque.
Voltamos para o Hotel antes do sol se por, voltamos ao Hotel e fomos surpreendidos por viaturas da polícia e do corpo de bombeiros. Escombros se espalhavam pelo chão. Vidro e metal retorcido podiam ser vistos espalhados por toda Avenida. A poeira tomava conta de tudo, deixando a neve cinzenta e a transformando em barro. Na altura do décimo andar, um enorme buraco esfumaçado no prédio espelhado era a explicação: uma explosão tinha acontecido. Enquanto eu andava por entre curiosos filmando e fotografando as cenas com celulares ou tentando contactar familiares, Ross me seguia aparentando não acreditar no que via.
Quando tentei entrar, senti a mão de um policial empurrar o meu peito. Ele não me deixou entrar, a área estava isolada. Ross sacou uma carteira do sobretudo e em algum momento citou o termo "Segurança Nacional". Imediatamente o policial levantou a fita amarela que tomava a calçada e permitiu que entrássemos.
- Você escapou dele mais uma vez garoto. - resmungou o velho enquanto passávamos pela fita.
Havia mobília queimada espatifada pelo chão molhado, papéis, pedaços de vidro e plástico. Uma banheira - ou que sobrou dela se precipitava em frente ao Lobby do hotel. Jornalistas corriam de lá pra cá e o lobby estava caótico. Perguntamos no balcão de atendimento quais eram as suítes atingidas, o quarto de Frida foi citado.
Me precipitei em subir correndo pelas escadas de emergência. Àquela altura, já não sentia-me limitado pelas minhas pernas, mas foi Ross quem me puxou pelo casaco e quase me fez cair para trás.
- Não há nada para ver lá rapaz. Ela já se foi. Nós temos que ir.
- Não, eu preciso voltar lá em cima. Eu sei que ela está lá - eu simplesmente tinha essa certeza sem ao menos entender o porquê.
- Não banque o rebelde agora garoto, temos que deixar Boston essa noite. Tenho alguns conhecidos em Nova York que podem nos ajudar. Precisamos daqueles livros, temos que continuar com ou sem ela.
- Eu sei onde eles estão.
Nesse momento, o velho pareceu finalmente surpreso. Foi a primeira expressão que eu vi no rosto dele desde o sorriso no carro a caminho do Aeroporto em Moncton.
- Onde?
- Numa cabana nas rochosas, a quatrocentas milhas a noroeste de Calgary. Eu posso te levar até lá. Mas precisa me deixar subir. - a memória apareceu de supetão como quando a gente subitamente se lembra de um sonho que teve na noite anterior
- De jeito nenhum garoto.
- Você não vai me impedir.
- Não queira foder comigo rapaz. - ele disse enquanto apertava meu braço e puxava discretamente a pistola e a encostava na minha virilha certificando-se de que ninguém estava vendo.
- O que você vai fazer? Atirar em mim aqui? Na frente de todo mundo? Eu acho que não.
Ele me fitou por alguns segundos com um ar de desprezo até que seus dedos se afrouxaram entre meu braço e eu me atirei em direção as escadas. Já no primeiro lance, era uma escuridão total. Tirei o celular do bolso para iluminar os degraus e percebi que havia mais uma mensagem:
"Cobertura. Agora."
Corri degraus acima pensando em tudo que acontecia. Antes de chegar no quarto andar, eu já estava exausto, minhas pernas latejavam e sentia-me cada vez mais fraco, mas não podia desistir ali. Não fazia sentido Francis me mandar todas aquelas mensagens tendo a intenção de me matar. Ele poderia ter me matado em Moncton, foi a melhor chance. Não precisaria explodir um prédio inteiro ou derrubar um avião.
Então me lembrei da ligação que Ross recebeu pela manhã, pouco depois de eu ter recebido todas aquelas mensagens no celular. E, afinal, quem colocou o telefone na minha mala? Quem esteve perto o bastante pra isso? Passou pela minha cabeça que Ross e Francis estavam trabalhando juntos. Ambos armaram para matar Frida. Ambos armariam para me matar. Nada melhor para ganhar minha confiança do que me convencer de que um faria tudo para me proteger enquanto outro tentaria me matar. Afinal, o que havia naqueles livros que era tão importante para todas essas pessoas? E se Francis já sabia onde eles estavam, porque viria até Boston atrás de nós?
Eu pensei em desistir da subida, mas fui tomado pelo impulso. Já não me importava mais se estaria vivo ou morto no fim do dia, eu precisava saber. Se alguém fosse colocar uma bala na minha cabeça, deveria ao menos e dar um motivo.
Cheguei ao último lance de escadas e forcei a porta que dava acesso ao terraço. O suor corria vasto pelo meu corpo e eu pensei que fosse morrer sufocado, então abandonei o casaco, guardei a navalha no bolso da calça e saí O vento forte quase me derrubou. Dutos de ventilação, uma enorme torre, claraboias de vidro e equipamentos de manutenção. A Sudoeste, eu podia ver a fumaça do décimo andar subir e ganhar os céus, mas não havia ninguém lá em cima. Até que eu resolvi olhar para trás.
Ross estava na porta com a pistola apontada em minha direção. Francis saiu de trás deu ma das claraboias também armado.
- Ele se lembrou onde estão os livros. Ele pode nos levar até lá. - disse Ross sem tirar os olhos de mim.
- Perfeito.
Francis se aproximou, levantou o revólver na direção da cabeça de Ross e antes que ele notasse, eu fechei os olhos para não ver. O estampido quase me deixou surdo, o zunido que ecoou pela minha cabeça foi interrompido pelo violento baque do corpo de Ross caindo no chão.
Quando abri os olhos, Ross estava estirado no chão e o sangue fluía pelo cascalho como uma cascata vermelha. Francis andava na minha direção enquanto guardava o revólver.
- Agora devemos ir Aaron, não há mais tempo.
- O que há nos livros?
- Informações. Datas de morte de pessoas importantes. Cotações de ações de grandes empresas, resultados e eleições, falências, fusões de grandes companhias. O começo e o fim de guerras e epidemias. Catástrofes naturais, acidentes aéreos...
- E o que há de tão importante nisso.
- A parte importante é que nada disso aconteceu. Ainda.
- Do que você está falando.
- São previsões Aaron. Coisas que você viu. Os livros tem uma descrição exata de acontecimentos importantes no mundo pelos próximos dez ou quinze anos. Nas mãos erradas, essas informações podem se transformar numa arma. Você escolheu esquecer, escolheu viver o presente pois não suportava mais ver o futuro. Você tinha se perdido e já não sabia mais onde ficava o presente. Sua vida se tornou um caos de previsões e mais previsões. Ela te hipnotizou, apagou a sua memória para que você pudesse voltar a viver sua vida normalmente. Mas suas anotações foram escondidas e a única pessoa além de você que sabia da localização delas morreu há alguns dias. Por isso eles foram atrás de você. Ross e Frida trabalham para pessoas que os pagam muito bem para conseguir esse tipo de informação. Você já foi muito bem pago para isso, mas o preço disso foi alto demais pra você.
Pra mim, aquilo tudo parecia uma brincadeira de mau gosto. Como eu poderia saber de todas aquelas coisas? Como poderia prever aquilo? Por devaneio ou pura fuga, olhei para Oceano. Então me lembrei-me do acidente na rodovia. Lembrei-me da visão que tive quando Frida estava comigo no topo de um edifício.
"Se você pular, eu pulo."
Percebi que era o mesmo prédio do sonho.
Francis percebeu quando eu olhava por cima do seu ombro e virou-se para trás. Ela estava logo atrás. As mãos nuas e o cabelo bagunçado pelo vento. Antes que Francis pudesse levantar sua arma e disparar, me atirei as suas costas, puxei a navalha e enterrei no seu pescoço. O sangue quente escorreu entre meus dedos. Francis lutou, tentou se livrar enquanto engasgava e morria nos meus braços. Até que ele parou de lutar e caiu envolto numa poça de sangue.
Frida andou em minha direção.
- Nós somos o que somos - disse ela - e ás vezes não podemos conviver com isso.
- Ás vezes eu queria escolher.
Ela olhou na direção da fumaça e disse:
- Se você pular eu pulo.
- Talvez seja a coisa certa a fazer. Ninguém deveria viver tendo visto as coisas que vi.
Deixei a navalha cair e me aproximei do parapeito, a vertigem me atacou como uma náusea violenta. Ela se aproximou e passou os braços pela minha cintura descansou a cabeça nas minhas costas e suspirou.
- Eu queimei os livros - disse para ela.
- Eu sei.
- Era a coisa certa a se fazer.
Me virei para ela e encarei seus olhos negros e profundos. O vento soprava seus cabelos e eles pareciam tão livres como pássaros no céu de Outubro. Ela se aproximou e me beijou. O beijo que a neguei no fundo do rio. Longo, estoico, aconchegante. Agarrei-a pelo braço e puxei-a com força o bastante para desvencilhá-la de mim. A empurrei na direção do parapeito e não olhei para trás pois não quis vê-la cair.
Me instalei numa suíte extravagante com muito mais do que eu precisava. Comecei a desfazer minhas malas quando encontrei algo curioso: um telefone celular. Eu digo curioso porque, até então, eu não tinha um. O último que eu lembro de ter morreu no fundo do rio no dia que eu caí.
Examinei o aparelho por alguns instantes. Liguei-o e percebi que ele estava bloqueado, precisava de uma senha que eu não conhecia. Larguei ele sobre a mesa e terminei de desfazer minhas malas ainda curioso com o artefato. Tomei um banho e fui dormir.
Sonhei com Frida, a mulher do fundo do rio. Ela se despia enquanto sussurrava uma canção sobre o fim do mundo.
Acordei na manhã seguinte com Ross batendo a minha porta. Eram nove e quinze da manhã e iríamos a algum lugar. Eu me arrumava para sair quando me lembrei do celular. Apanhei-o de cima da mesa e ele tinha a luz do display acesa e uma nova mensagem.
"Saia do prédio o quanto antes."
Fiquei perturbado pelo conteúdo da mensagem, mas acabei ignorando. Enfiei o telefone no bolso e encontrei Ross no corredor me esperando. Descemos até o saguão e saímos do Hotel. Nos dirigíamos a um beco ao lado do edifício para fumar. Esperávamos Frida para seguir viagem. De acordo com Ross, iríamos ao sul da cidade verificar alguns imóveis que já pertenceram a mim no passado - embora eu não me lembre disso.
Antes de sair, apanhei uma navalha no banheiro e escondi no bolso do casaco.
Pensei em contar para Ross sobre o celular que apareceu na minha mala na noite seguinte, mas preferi manter isso em segredo por hora. Foi quando o telefone tocou. Eu me assustei e quase deixei cair o cigarro da boca. Só então percebi que não era o meu telefone que tocava e sim o dele. Meia dúzias de "Ok" e "sim" foram o bastante pra ele terminar a ligação.
- Vamos sem ela - disse o velho carrancudo.
Alugamos um carro e basicamente passamos o primeiro dia do ano arrombando garagens e apartamentos. Casas e pequenos porões. Fazendo perguntas em halls de edifício e balcões de bar. Nada. Apenas encontramos lugares vazios, e vizinhos que não viram nada e não sabiam de nada.
Quando decidimos voltar ao Hotel e continuar no dia seguinte, eu estava exausto e faminto. Resolvemos passar numa costelaria. Aproveitei a ida no banheiro para verificar as mensagens no celular. Novas mensagens se acumulavam na caixa de entrada.
"Eles derrubaram o avião. Assim que eles encontrarem os livros, vão te matar."
"Me encontre hoje à noite no terraço do Hotel. Precisamos conversar."
"Há uma arma no banheiro de sua suíte, você pode precisar."
Todas as mensagens assinadas por Francis, que julguei ser o homem de cavanhaque.
Voltamos para o Hotel antes do sol se por, voltamos ao Hotel e fomos surpreendidos por viaturas da polícia e do corpo de bombeiros. Escombros se espalhavam pelo chão. Vidro e metal retorcido podiam ser vistos espalhados por toda Avenida. A poeira tomava conta de tudo, deixando a neve cinzenta e a transformando em barro. Na altura do décimo andar, um enorme buraco esfumaçado no prédio espelhado era a explicação: uma explosão tinha acontecido. Enquanto eu andava por entre curiosos filmando e fotografando as cenas com celulares ou tentando contactar familiares, Ross me seguia aparentando não acreditar no que via.
Quando tentei entrar, senti a mão de um policial empurrar o meu peito. Ele não me deixou entrar, a área estava isolada. Ross sacou uma carteira do sobretudo e em algum momento citou o termo "Segurança Nacional". Imediatamente o policial levantou a fita amarela que tomava a calçada e permitiu que entrássemos.
- Você escapou dele mais uma vez garoto. - resmungou o velho enquanto passávamos pela fita.
Havia mobília queimada espatifada pelo chão molhado, papéis, pedaços de vidro e plástico. Uma banheira - ou que sobrou dela se precipitava em frente ao Lobby do hotel. Jornalistas corriam de lá pra cá e o lobby estava caótico. Perguntamos no balcão de atendimento quais eram as suítes atingidas, o quarto de Frida foi citado.
Me precipitei em subir correndo pelas escadas de emergência. Àquela altura, já não sentia-me limitado pelas minhas pernas, mas foi Ross quem me puxou pelo casaco e quase me fez cair para trás.
- Não há nada para ver lá rapaz. Ela já se foi. Nós temos que ir.
- Não, eu preciso voltar lá em cima. Eu sei que ela está lá - eu simplesmente tinha essa certeza sem ao menos entender o porquê.
- Não banque o rebelde agora garoto, temos que deixar Boston essa noite. Tenho alguns conhecidos em Nova York que podem nos ajudar. Precisamos daqueles livros, temos que continuar com ou sem ela.
- Eu sei onde eles estão.
Nesse momento, o velho pareceu finalmente surpreso. Foi a primeira expressão que eu vi no rosto dele desde o sorriso no carro a caminho do Aeroporto em Moncton.
- Onde?
- Numa cabana nas rochosas, a quatrocentas milhas a noroeste de Calgary. Eu posso te levar até lá. Mas precisa me deixar subir. - a memória apareceu de supetão como quando a gente subitamente se lembra de um sonho que teve na noite anterior
- De jeito nenhum garoto.
- Você não vai me impedir.
- Não queira foder comigo rapaz. - ele disse enquanto apertava meu braço e puxava discretamente a pistola e a encostava na minha virilha certificando-se de que ninguém estava vendo.
- O que você vai fazer? Atirar em mim aqui? Na frente de todo mundo? Eu acho que não.
Ele me fitou por alguns segundos com um ar de desprezo até que seus dedos se afrouxaram entre meu braço e eu me atirei em direção as escadas. Já no primeiro lance, era uma escuridão total. Tirei o celular do bolso para iluminar os degraus e percebi que havia mais uma mensagem:
"Cobertura. Agora."
Corri degraus acima pensando em tudo que acontecia. Antes de chegar no quarto andar, eu já estava exausto, minhas pernas latejavam e sentia-me cada vez mais fraco, mas não podia desistir ali. Não fazia sentido Francis me mandar todas aquelas mensagens tendo a intenção de me matar. Ele poderia ter me matado em Moncton, foi a melhor chance. Não precisaria explodir um prédio inteiro ou derrubar um avião.
Então me lembrei da ligação que Ross recebeu pela manhã, pouco depois de eu ter recebido todas aquelas mensagens no celular. E, afinal, quem colocou o telefone na minha mala? Quem esteve perto o bastante pra isso? Passou pela minha cabeça que Ross e Francis estavam trabalhando juntos. Ambos armaram para matar Frida. Ambos armariam para me matar. Nada melhor para ganhar minha confiança do que me convencer de que um faria tudo para me proteger enquanto outro tentaria me matar. Afinal, o que havia naqueles livros que era tão importante para todas essas pessoas? E se Francis já sabia onde eles estavam, porque viria até Boston atrás de nós?
Eu pensei em desistir da subida, mas fui tomado pelo impulso. Já não me importava mais se estaria vivo ou morto no fim do dia, eu precisava saber. Se alguém fosse colocar uma bala na minha cabeça, deveria ao menos e dar um motivo.
Cheguei ao último lance de escadas e forcei a porta que dava acesso ao terraço. O suor corria vasto pelo meu corpo e eu pensei que fosse morrer sufocado, então abandonei o casaco, guardei a navalha no bolso da calça e saí O vento forte quase me derrubou. Dutos de ventilação, uma enorme torre, claraboias de vidro e equipamentos de manutenção. A Sudoeste, eu podia ver a fumaça do décimo andar subir e ganhar os céus, mas não havia ninguém lá em cima. Até que eu resolvi olhar para trás.
Ross estava na porta com a pistola apontada em minha direção. Francis saiu de trás deu ma das claraboias também armado.
- Ele se lembrou onde estão os livros. Ele pode nos levar até lá. - disse Ross sem tirar os olhos de mim.
- Perfeito.
Francis se aproximou, levantou o revólver na direção da cabeça de Ross e antes que ele notasse, eu fechei os olhos para não ver. O estampido quase me deixou surdo, o zunido que ecoou pela minha cabeça foi interrompido pelo violento baque do corpo de Ross caindo no chão.
Quando abri os olhos, Ross estava estirado no chão e o sangue fluía pelo cascalho como uma cascata vermelha. Francis andava na minha direção enquanto guardava o revólver.
- Agora devemos ir Aaron, não há mais tempo.
- O que há nos livros?
- Informações. Datas de morte de pessoas importantes. Cotações de ações de grandes empresas, resultados e eleições, falências, fusões de grandes companhias. O começo e o fim de guerras e epidemias. Catástrofes naturais, acidentes aéreos...
- E o que há de tão importante nisso.
- A parte importante é que nada disso aconteceu. Ainda.
- Do que você está falando.
- São previsões Aaron. Coisas que você viu. Os livros tem uma descrição exata de acontecimentos importantes no mundo pelos próximos dez ou quinze anos. Nas mãos erradas, essas informações podem se transformar numa arma. Você escolheu esquecer, escolheu viver o presente pois não suportava mais ver o futuro. Você tinha se perdido e já não sabia mais onde ficava o presente. Sua vida se tornou um caos de previsões e mais previsões. Ela te hipnotizou, apagou a sua memória para que você pudesse voltar a viver sua vida normalmente. Mas suas anotações foram escondidas e a única pessoa além de você que sabia da localização delas morreu há alguns dias. Por isso eles foram atrás de você. Ross e Frida trabalham para pessoas que os pagam muito bem para conseguir esse tipo de informação. Você já foi muito bem pago para isso, mas o preço disso foi alto demais pra você.
Pra mim, aquilo tudo parecia uma brincadeira de mau gosto. Como eu poderia saber de todas aquelas coisas? Como poderia prever aquilo? Por devaneio ou pura fuga, olhei para Oceano. Então me lembrei-me do acidente na rodovia. Lembrei-me da visão que tive quando Frida estava comigo no topo de um edifício.
"Se você pular, eu pulo."
Percebi que era o mesmo prédio do sonho.
Francis percebeu quando eu olhava por cima do seu ombro e virou-se para trás. Ela estava logo atrás. As mãos nuas e o cabelo bagunçado pelo vento. Antes que Francis pudesse levantar sua arma e disparar, me atirei as suas costas, puxei a navalha e enterrei no seu pescoço. O sangue quente escorreu entre meus dedos. Francis lutou, tentou se livrar enquanto engasgava e morria nos meus braços. Até que ele parou de lutar e caiu envolto numa poça de sangue.
Frida andou em minha direção.
- Nós somos o que somos - disse ela - e ás vezes não podemos conviver com isso.
- Ás vezes eu queria escolher.
Ela olhou na direção da fumaça e disse:
- Se você pular eu pulo.
- Talvez seja a coisa certa a fazer. Ninguém deveria viver tendo visto as coisas que vi.
Deixei a navalha cair e me aproximei do parapeito, a vertigem me atacou como uma náusea violenta. Ela se aproximou e passou os braços pela minha cintura descansou a cabeça nas minhas costas e suspirou.
- Eu queimei os livros - disse para ela.
- Eu sei.
- Era a coisa certa a se fazer.
Me virei para ela e encarei seus olhos negros e profundos. O vento soprava seus cabelos e eles pareciam tão livres como pássaros no céu de Outubro. Ela se aproximou e me beijou. O beijo que a neguei no fundo do rio. Longo, estoico, aconchegante. Agarrei-a pelo braço e puxei-a com força o bastante para desvencilhá-la de mim. A empurrei na direção do parapeito e não olhei para trás pois não quis vê-la cair.
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